Sabemos que a Umbanda é uma religião natural, espiritualista, mediúnica e tem como base dos seus fundamentos a Ciência Divina que é, em si, o conjunto de Movimentos advindos de Deus para a manutenção e perfeito funcionamento da sua máquina (ou máquinas) ou motor(es) – parafraseando o conceito teológico do filósofo Aristóteles -. Portanto, na Umbanda, experiência mística e conhecimento caminham lado a lado e de braços entrelaçados.
Durante a Idade Média, na Europa, especialmente a partir do século IX, tendo como grande expoente Tomás de Aquino, desenvolveu-se a Escolástica no seio do cristianismo. Foi um movimento filosófico cristão que vislumbrou a fé através da razão, utilizando-se de algum sistema filosófico já estabelecido.
Aqui citado por nós como o grande expoente desse movimento, Tomás de Aquino foi uma espécie de “mensageiro” da filosofia aristotélica, trazendo-a para o âmago da Igreja Católica, trabalhando para adaptá-la à fé cristã.
No século XIV, o movimento escolástico entrou em declínio e cresceu o movimento místico cristão, especialmente na Alemanha, com mestre Eckhart (mas também pode-se destacar João da Cruz, na Espanha e Rita de Cássia na Itália, entre outros), que pretendia justificar a fé sem o concurso da razão.
Abrindo mão de conceitos pagãos (os termos ‘pagão’ e ‘herético’ ganharam, segundo alguns estudiosos, definições pejorativas dentro do movimento cristão, mas, não nos aprofundaremos em tal contexto nesse trabalho), entendiam que apenas a prática da fé mística pela contemplação na conexão com Deus, traria ao ente humano aquilo que ele necessita para a sua evolução, crescimento e desenvolvimento.
Visões divinas, em tais práticas místicas, fizeram parte desse contexto, aflorando muitas divergências no ambiente cristão. Porém, nosso objetivo neste artigo não é avaliar a experiência mística cristã medieval, tão somente, utilizamo-nos dessa sólida experiência como base e “gancho” para que possamos abordar a questão “fé e razão” ou “fé, mística e conhecimento” no jovem seio umbandista.
A Umbanda é, de fato, uma jovem religião, com pouco mais de cem anos de existência, ainda em formação e desenvolvimento. Por isso, muitos estudos e discussões se fazem necessários, afinal, quando se constrói uma casa, ninguém se muda e passa a nela residir enquanto ela possui somente o alicerce. Faz-se necessário que a edificação possua uma estrutura mínima, ainda que continue sendo construída com alguém já habitando-a.
As experiências místicas se dão, no âmbito das religiões, de formas diversas, afinal, elas (as religiões) são agrupamentos que reúnem grupos de seres humanos afins para que, a partir de convergências conscienciais, vibratórias, energéticas, espirituais e culturais, possam, em congregação (como quer a Fé Divina, de nosso Pai Oxalá) religarem-se à nossa Origem Maior (Deus).
Como agrupamentos atratores de grupos de espíritos encarnados afins, as religiões servem como ponte ou veículo para manifestações místicas. Na Umbanda, bem como nas outras religiões naturais mundo afora (mas, também, em algumas religiões mentalistas*), a experiência mística se dá pelo processo mediúnico.
Para apimentarmos nossa reflexão, vejamos esta definição acerca da experiência mística de MESQUITA, R.G (2013, p. 121 – Perspectiva): […] Com efeito, quem não experimentou a união mística não pode saber o que ela é, e quem a experimentou é incapaz de descrevê-la objetivamente. Nem poderia ser de outra forma, pois o êxtase é estritamente individual e a experiência de um indivíduo em nada contribuiria para informar sobre a experiência de terceiros.
Aquilo que este autor denomina “êxtase”, nós, umbandistas, denominamos manifestação mediúnica. E concordamos com a sua afirmação, que consiste, trazendo para as nossas palavras, em dizer que toda e qualquer manifestação do dom mediúnico, ainda que mantenha em si características gerais, traz em cada ser humano que a ele manifesta, características particulares que, aliadas àquelas gerais que o caracterizam universalmente, trazem ao “DNA Divino” (único em cada ser humano), uma combinação ímpar de pontos (ou características).
Assim sendo, a experiência mística pode ser sentida, experimentada por cada pessoa, mas, diferentemente de processos empíricos, não pode ser traduzida, transmitida ou repassada a outrem. Talvez por isso, Kant tenha considerado a experiência mística cristã medieval fruto da imaginação. Para o autor da Crítica da Razão Pura, as condições da possibilidade do conhecimento humano se estabelecem conforme as categorias Espaço e Tempo; ele ainda afirma que a mística deve ser excluída da esfera racional, pois é impossível efetivarmos a sua demonstração.
Em contraponto, mais tarde, Hegel compreende de forma distinta o movimento místico cristão medieval, em “Lições sobre a história da filosofia”, reconhecendo a sua autenticidade: “Os místicos tão próximos e não tão embebidos em disputas, argumentos e provas, como os escolásticos, tentam manter o máximo possível de pureza para a doutrina da Igreja e para a contemplação filosófica. Eles são, em parte, homens piedosos e sutis, que seguiram filosofando à maneira dos neoplatônicos, como antes deles já fazia Escoto Erígena. Nós encontramos neles filosofia autêntica, mesmo que esteja presente sob o nome de misticismo; é uma filosofia íntima e recatada, que mantém uma grande semelhança com o spinozismo. Esses pensadores também derivam a sua ética e a sua religiosidade da verdadeira emoção e, nesse sentido, formulam suas considerações, seus preceitos etc.” (HEGEL; 1997, P. 148 apud MESQUITA, R.G; 2013, P. 123-124 / Tradução nossa)
Entendemos que, nas análises filosóficas dos autores aqui colocados (Kant e Hegel), bem como, de outros, falta “repertório”. O que estamos dizendo com isso? Simplesmente, que esses filósofos olharam para a manifestação religiosa europeia cristã desconsiderando qualquer manifestação religiosa ou mística natural, de cultos que impregnaram aquele continente, naquilo que definiram como paganismo e, principalmente, os advindos da África, continente que foi colonizado e surrupiado em diversos aspectos, assim como fora também na América, desconsiderando toda e qualquer experiência mística surgida nessas localidades.
Nesse período histórico, já podemos visualizar aquilo que chamamos de preconceito racial a partir do fenômeno religioso ou “racismo religioso”, tão comum até os dias atuais em nossa sociedade, não é mesmo?
Alguns desses pensadores, em espírito, após seus desencarnes, puderam fazer um balanço dos seus pensamentos, numa espécie de “peneira do conhecimento”, em que retiraram todos os seus equívocos renovando seus objetos de estudos nas escolas do astral. Alguns fizeram isso, nem todos! Este é um processo normal, pois, todos nós, ao acordarmos para a vida eterna, nos depararemos com as nossas limitações que se apresentaram e se impuseram na experiência carnal.
O reconhecimento à experiência mística como fenômeno sensorial enfrenta preconceitos entre muitos pensadores e por uma considerável parcela do meio acadêmico até os dias atuais. Uma clara prova disso se deu no século XIX, na França, quando os estudos científicos (porque métodos científicos foram utilizados) de Hippolyte Léon Denizard Rivail (Allan Kardec) foram desconsiderados pela pretensa “soberania do conhecimento humano”.
Mas, retornemos ao universo umbandista…
Como se dá a experiência mística no âmbito umbandista? E como se mostra e se apresenta o Conhecimento? O aspecto místico aqui analisado é, por si só, suficiente para uma real evolução do ser humano que encontra na Umbanda a sua via evolutiva enquanto espírito encarnado? Conhecimento teórico pode fundamentar a prática da fé? Fé ou Razão, qual desses predicados divinos contribuirá de fato e a contento para a nossa evolução, enquanto umbandistas? Vejamos…
Fé = 1º Sentido da Vida (primeira linha de Umbanda): é polarizada pelo nosso Amado Pai Oxalá e por Mãe Logunã-Tempo, como Orixás Regente e Guardiã desse aspecto na vida dos seres;
Razão (Justiça Equilibradora) = 4º Sentido da Vida (quarta linha de Umbanda): é polarizada pelo nosso Amado Pai Xangô e por Mãe Oro Iná, como Orixás Regente e Guardiã desse aspecto na vida dos seres;
Fé e Razão são dois predicados divinos, dois sentidos da vida e, por assim serem, são duas das sete linhas de Umbanda (que se utiliza desses sentidos divinos para fundamentar sua teologia e sua liturgia). Portanto, assim sendo, para nós, umbandistas, não há nexo (respeitando toda e qualquer manifestação religiosa) em predicados advindos de Deus se “digladiarem” entre si. É um desgaste energético desnecessário e nada proveitoso.
A experiência mística umbandista se dá, obviamente e de forma muito clara, na manifestação nos terreiros, nos rituais, especialmente por intermédio da incorporação. Sacerdotes, sacerdotisas, médiuns (homens e mulheres) atuam para a prática da caridade – qualidade divina a nós anunciada como fundamento básico da religião umbandista, pelo sr. Caboclo das Sete Encruzilhadas -, a partir desse aspecto de manifestação mística – a incorporação -, em que o ser humano encarnado dá passagem para a manifestação de espíritos outorgados pela Lei e Justiça de Olodumaré (nossa Origem Divina) a atuarem em benefício de seus irmãos(ãs) encarnados(as).
É, a incorporação, a principal forma da manifestação mística na Umbanda, mas não a única. Outros recursos, tendo como base a intuição, também são utilizados na conexão Orixá-médium / guia espiritual-médium para uma melhor realização dos trabalhos espirituais.
O Conhecimento, terceiro sentido da vida e terceira linha de Umbanda, regido por nosso amado Pai Oxóssi, como Orixá Regente e por nossa amada Mãe Obá, como Orixá Guardiã, se manifesta o tempo todo, pois, há mais de cem anos, inúmeros ensinamentos têm sido trazidos pelos guias espirituais, nossos mestres.
Mas, como tudo o que caminha no Tempo, nossa religião também passa por processos de renovação, transmutação, progresso e evolução. Assim, é uma vontade divina que os adeptos da Umbanda estudem e conheçam mais profundamente os fundamentos divinos que se manifestam por intermédio da religião que professam.
Então, aos místicos umbandistas, dizemos que o conhecimento teórico dos fundamentos religiosos só traz crescimento à prática. Estudar e aprofundar-se na teologia umbandista é fortalecer-se e abrir-se para uma manifestação muito mais forte e abrangente dos guias espirituais. Ora, todo e qualquer conhecimento teórico advém da prática, pois, antes de ser intelectualizado (absorvido pelo intelecto humano), foi observado em “campo”, no âmbito do terreiro, permitindo que os ensinamentos trazidos por revelação (dos nossos guias espirituais) a nós chegassem e na nossa realidade material se cristalizassem.
Todo e qualquer conhecimento teórico “inventado”, fruto de “imaginações férteis”, nunca se concretizará na prática. Por isso, no nosso trabalho de aprofundamento do conhecimento, adotando minimamente um método científico, de observação, trazendo-o ao nosso ambiente umbandista e respeitando os nossos conceitos, cresceremos mais rapidamente e com força enquanto religião.
Vejamos: “A educação mediúnica é muito importante, só se reeducando internamente é que um médium alcança níveis vibratórios mentais e conscienciais que lhe facultam nos níveis espirituais superiores, a sintonização mental com seu mestre individual, a neutralização de possíveis vícios antagônicos com as práticas religiosas e a compreensão ou percepção do que acontece à sua volta, mas não é visível, assim como do que já está acontecendo dentro do seu campo mediúnico. Quando bem educado mediunicamente, sua sensitividade é capaz de identificar presenças positivas ou negativas que adentrem seus limites vibratórios. Aí temos, em poucas linhas, um apanhado de como a boa educação mediúnica auxilia os praticantes ou médiuns” (SARACENI; 2010, P. 97)
[…] O campo mediúnico inicia-se no corpo elementar básico e expande-se uniformemente ao redor dele por aproximadamente uns trinta centímetros, e até uns setenta, no máximo. Este campo mediúnico ou eletromagnético é comum a todos os seres humanos, independentemente de sua formação cultural ou religiosa. E aqui nos limitaremos só aos seres humanos, certo?
O fato é que esse campo eletromagnético tem sua sede no mental, que é a “coroa” ou chacra coronário, iniciando-se ao seu redor e derramando-se em torno do corpo elemental básico. “Elemental” porque é elemento puro, e básico porque é o primeiro “corpo” que o ser humano teve formado em um estágio virginal no qual evoluiu.
O campo mediúnico abre-se para o plano espiritual e é por seu intermédio que são estabelecidas ligações magnéticas com o mundo espiritual […] (SARACENI; 2010, P. 99)
[…] Tudo o que comentamos até aqui deve ser estudado atentamente, pois o campo mediúnico ou eletromagnético não é a aura. Esta é tão somente composta por irradiações do corpo energético, um gerador energético por excelência.
A aura é um espelho etérico do estado geral do ser e mostra, por meio de suas cores, os tipos de sentimentos vibrados e o padrão vibratório estabelecido no mental, que é o centro magnético do espírito.
Nos processos de desenvolvimento mediúnico, todo esse campo eletromagnético tem seu padrão reajustado para que as incorporações se realizem da forma mais natural possível […](SARACENI; 2010, P. 102)
Agora, será que conseguimos perceber o quão importante é o estudo aprofundado e o conhecimento científico de fundamentos que se apresentam na Umbanda? Afinal, eles se manifestam na religião para que, numa espécie de oficina ou campo de treinamentos, nos capacitemos para que possamos utilizá-los na vida, no cotidiano, enquanto espíritos viventes no mundo material e na sua sequência natural, no mundo espiritual.
Experiência mística e conhecimento, Fé e Razão, só podem andar juntas, imbricadas. Assim, cresceremos como médiuns umbandistas, adeptos (pois, nem todo umbandista é um médium ativo, mas é um seguidor da religião) e, principalmente, como espíritos humanos em evolução.
Um saravá fraterno!
André Cozta
*Segundo Rubens Saraceni, em diversas obras suas, há religiões mentalistas, que se utilizam do recurso mental para conexão com Deus (Igrejas cristãs, Espiritismo etc.) e religiões naturais, em que os adeptos se conectam com Deus a partir de Seus Predicados Divinos manifestados na Natureza Mãe. Essa é uma definição propedêutica que pode ser aprofundada com pesquisas acuradas.
REFERÊNCIAS:
LOBO, Saulo Maurício. Escolástica/Mestre Eckhart . Brasil Escola, https://monografias.brasilescola.uol.com.br/filosofia/a-escolastica-mestre-eckhart.htm – Consulta em 26mai/2021.
MESQUITA, Rogério Garcia. Mística Medieval e Crítica Kantiana à Metafísica. Erechim – RS: Perspectiva – Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, 2013.
SARACENI, Rubens. Código de Umbanda. São Paulo: Madras, 2010.