Discussões acaloradas em defesa ou acusando as religiões ou a ciência têm se tornado cada vez mais comuns em nosso meio social. A velha dicotomia entre espiritual e material, fé ou sua ausência, crença ou descrença, dogmas e seus opostos e/ou contradições etc., tem sido pauta em muitos debates em grupos, especialmente nas redes sociais.
Mas, afinal, o que difere a religiosidade do estudo acadêmico ou científico? Podem caminhar de braços entrelaçados ou não? Bem, podemos considerar que, cada vez mais, esses dois aspectos importantíssimos para o desenvolvimento da vida humana, têm se mostrado fundamentais e, também, que podem complementar-se.
Para ilustrar o nosso raciocínio, escolhi descrever uma cena do episódio 3 [“Saída”] da temporada 1 da série Outlander (2014 – disponível em Netflix e Disney+). Essa série baseia-se nos romances da autora estadunidense Diana Gabaldon [A Viajante do Tempo] em que a personagem central transporta-se do século XX para o século XVIII, defrontando-se com uma nova vida, em um ethos diferente, num outro tempo, ainda que no mesmo espaço/local, no caso, a Escócia.
Serve-nos, tal metáfora [da viagem no tempo], como uma reflexão acerca de tudo o que a humanidade vem vivendo, seus progressos [ou não] em muitos campos da vida.
A seguir, descrevo um breve diálogo entre as personagens Geillis Duncan (Lotte Verbek), uma mulher mística no século XVIII e Claire Randall (Caitriona Balfe), a viajante do tempo, não mística, não religiosa, uma enfermeira que serviu na segunda guerra mundial, mas que é tida como bruxa ou curandeira por muitos, naquele tempo e local para o qual foi transportada. O diálogo se dá enquanto ambas, juntas, colhem ervas no campo.
[Geillis]: Fiquei presa falando com o Padre Bain, aquele falastrão pomposo. Ele quer fazer um exorcismo no menino Baxter […]
[Claire]:Você disse “exorcismo”?
[Geillis]: Aparentemente, o Tammas Baxter foi à Igreja Negra com o pequeno Lindsay Macneill. Agora, o jovem tolo foi acometido com o mesmo mal […]
[Claire]: Quando você diz “acometido pelo mal”, o que exatamente quer dizer? Ele está doente?
[Geillis]: Ele não está doente, foi possuído. Você não acredita em possessão demoníaca, Claire?
[Claire]: Você sim?
[Geillis]: Acredito que há poderes além do nosso conhecimento, além do que podemos ver, ouvir ou tocar… demônio, fada, diabo, não importa como queira chamá-lo. Mas você acredita nos poderes da mágica, não é?
[Claire]: Não pensei muito sobre isso.
[Geillis]: Você nunca se encontrou numa situação que não tem explicação mundana?
[Claire]: Você precisa admitir que é muito possível que o menino esteja doente e não possuído. E, se for o caso, talvez haja algo que eu e você possamos fazer.
[Geillis]: As pessoas acreditam que o menino está possuído, Claire. Desafie isso por conta própria. Não chegarei perto dele e você não deveria também.
Esse trecho do diálogo ocorre, no episódio já citado, entre 24min32s. e 26min12s.
Na cena subsequente, o personagem Angus Mhor (Stephen Walters), aborda Claire Randal (Caitriona Balfe):
[Angus Mhor]: O Colum não vai gostar que você interfira no trabalho dos espíritos. Nâo é seu trabalho. Achei que poderia mudar de ideia.
[Claire]: Um padre, uma vez me disse que minhas habilidades curativas eram um dom divino.
Esse trecho do diálogo ocorre, nesse episódio, entre 26min47s. e 26min59s.
Vemos, nos breves diálogos aqui descritos, a dicotomia entre ciência e fé, religiosidade ou crença. Mas também vemos o enfrentamento entre dois tempos históricos, como se os séculos pudessem ficar frente a frente, discutindo suas razões. Em um lado da discussão está um século em que as explicações científicas eram escassas, por assim dizer e, por isso, recorria-se ao “inexplicável”. No outro lado da discussão, encontra-se o século das grandes descobertas científicas e avanços tecnológicos.
Quem tem razão? Quem é o grande vencedor dessa batalha?
Há quem diga (como Nietzsche, por exemplo), que a ciência desenvolvida, com o passar do tempo, traz em si os mesmos métodos, vícios, a mesma fórmula dogmática utilizada pela religião.
Bem, precisamos entender que, todos esses pensadores estudados por nós, são europeus e têm como balizador de suas ideias a cultura e a vida naquele continente. No máximo, mais recentemente (historicamente falando), também incluem os EUA em suas análises.
Trocando em miúdos, o seu mundo, ou o mundo para o qual voltam seus olhares, é reduzido por uma visão colonialista ou colonizadora. Isso precisa ser registrado de forma neutra, tranquila e sem nenhuma gota de análise política ou ideológica, porque, simplesmente, é uma verdade clara que se mostra a quem quiser ver.
Assim sendo, tais análises – como a colocada nos parágrafos anteriores – não consideram as religiões naturais espalhadas mundo afora, tampouco as que os rodeavam, lá mesmo, na Europa. À exceção do próprio Nietzsche que, em dado momento considerou e falou positivamente de religiões afirmativas – assim ele definiu algumas religiões naturais – do México, sobre os quais teve notícias. Afora isso, toda e qualquer análise, quando se critica o fenômeno religioso, se volta para o Cristianiamo ou para a Igreja Católica, na maioria dos casos.
Ainda hoje, tais análises só consideram ou continuarão considerando as ditas religiões oficiais ou oficialescas – para ser mais exato -, que são as religiões advindas da fé cristã, bem como o judaísmo e o islamismo. Vez ou outra, citarão religiões hinduístas ou orientais, como o budismo, por exemplo, a antiga religião egípcia, mas nunca colocam em suas análises, as dos nativos brasileiros ou o culto africano aos Orixás, considerados atrasados pelo pensamento colonizador.
Nas religiões naturais, em suas essências, não encontraremos o dogmatismo, o pecado, bem como, algumas outras características comuns ao mentalismo das religiões abstratas. A não ser, quando já estão contaminadas pelo enxerto mentalista-abstracionista que predomina e controla o pensamento religioso no mundo.
Uma breve observação: usamos as definições de Rubens Saraceni para religiões naturais (aquelas que cultuam a Divindade por intermédio da Natureza – divina e planetária -, como a nossa Umbanda, entre outras mundo afora) e religiões abstratas (aquelas que cultuam o Divino por intermédio do verbo, da palavra, como igrejas cristãs etc.).
Para a maioria dos estudiosos e analistas, considera-se o valor de uma religião a partir de números [de adeptos] e também de países ou culturas que os absorvem. Isso sem contar o racismo religioso que predomina em nosso país e venda os olhos para as religiões populares, prejudicando qualquer análise e, no máximo, colocando-as numa “sacola comum”.
Nós sabemos que todas as religiões vêm de Deus e trazem diferenças em si, porque diferentes são os seres humanos. Então, elas atendem a grupos de afinidades ou de pessoas afins que enxergam Deus por intermédio de um [ou de alguns poucos] de seus incontáveis aspectos.
Recomendo a leitura da obra Umbanda – Conhecimentos Fundamentais (Rubens Saraceni; 2022 / RS Editora), pois, nela temos uma ideia de como uma religião é pensada, arquitetada, esquematizada no astral, sendo, em seguida, divinizada pelas divindades, para que, somente então, chegue a nós aqui no plano material da vida planetária.
Retorno para a análise proposta no início deste texto.
Ainda hoje, podemos ver nas redes sociais uma série de impropérios, absurdos, falas [ou escritas] completamente equivocadas no que se refere ao fenômeno religioso e suas funções, bem como, de negação da ciência e da sua importância para a caminhada evolutiva da humanidade, cada vez mais.
Precisamos entender que, em todos os campos da vida (social, religioso, científico, na educação etc.) teremos os processos conduzidos por seres humanos encarnados, imperfeitos e em evolução.
Ora, todos fazemos parte de um mesmo processo evolutivo, como se dirigíssemos carros em uma mesma via, onde alguns acelerarão, outros conduzirão de forma mais lenta os veículos, alguns serão responsáveis para com o trânsito, bem como para com o veículo que conduzem e, consequentemente, para com os outros naquela via. E também haverá aqueles irresponsáveis, com clara intenção de provocar acidentes e até mesmo de matar a quem quer que seja.
Isso não faz do trânsito, enquanto sistema, responsável pelos problemas que nele surgem. Ele, o sistema de trânsito, ao contrário disso, é ordenador. Assim ocorre também com religião e ciência. Existem para a evolução ordenada e justa dos seres humanos.
Religião atua no espírito, a ciência na matéria. Toda e qualquer tentativa de inversão sempre fracassa. O ideal é que se complementem, nunca se combatam, pois, fazer isso é abdicar do uso da inteligência que nos foi concedida por Deus.
No trecho colocado logo ao início do texto, vemos duas visões extremadas. Geillis entende que tudo se resolve a partir do sobrenatural e desconsidera a possibilidade de uma atuação médica ou científica. É claro, ela é [aparentemente] uma cidadã vivendo no século XVIII e não compreende a visão científica de Claire, afinal, naquele tempo e espaço as soluções “espirituais” ou inexplicadas se mostravam, muitas vezes, mais eficazes. Obviamente, precisamos também ressaltar que era um tempo em que se morria muito mais facilmente antes do envelhecimento (como o conhecemos hoje) sem encontrar soluções, tampouco explicações, para o que acontecia nos processos de enfermidade.
Por outro lado, Claire traz sua visão cientifica do século XX e não compreende que se possa buscar alguma solução para a saúde, que não seja por intermédio da ciência.
Obviamente, ambas defendem suas perspectivas e seus conhecimentos. Porém, não faltaria, para elas, uma abertura de visão que lhes permitisse transitar pelo olhar da outra e buscar compreendê-lo?
Aqui, deixo duas observações:
- Ainda que discordem, ambas estão buscando ervas em um campo que, para uma delas, auxiliará nas suas soluções mágicas, enquanto, para a outra, auxiliará nos tratamentos da saúde física de quem lhe procurar, afinal, ela, Claire, está no século XVIII e precisa levar os seus conhecimentos cienfíficos de duzentos anos à frente para lá, adaptando-os àquilo que possui à disposição.
- Geillis, que nesse momento da série aparece como uma mulher do século XVIII é, também, uma viajante do tempo, advinda do século XX.
Assim sendo, podemos analisar a partir de dois ângulos, sendo, um deles, o que já aqui colocamos, como confronto ou batalha dos tempos, entre si, metaforicamente falando e analisando, ou por outro ângulo, em que vemos duas mulheres contemporâneas defendendo arduamente um aspecto ou outro – ainda que deslocadas no tempo -.
E isso – discussão dogmática em defesa da ciência contra a religião ou vice-versa -, temos visto ainda hoje aos borbotões.
Note que, no diálogo entre Claire e Angus, ele a repreende afirmando a máxima em favor do sobrenatural e a resposta é magistral, quando ela diz que, segundo um padre, as suas habilidades curativas eram um dom divino. Tal frase nos mostra que há a vontade Divina em ambas as manifestações, na religiosa ou sobrenatural para o espírito e na científica para a matéria, reiterando o que escrevi aqui anteriormente.
Religião [seja qual for, respeitando-se as suas indiossincrasias] e ciência devem atuar nos seus campos. Sempre que respeitarmos isso, teremos sucesso. Obviamente, tudo terá um limite e, talvez aí esteja o grande problema, pois, invariavalmente, o ser humano quer alcançar a ilimitação, o infinito. Como pode, alguém limitado pretender alcançar isso?
Uma erva colhida, por qualquer uma dessas personagens (ou por qualquer pessoa), em um campo. possui um princípio ativo (atuante na matéria) que servirá para alguns tratamentos, mas não será recomendável para outras situações (o que é perfeitamente natural, em se tratando de elementos e energias); mas também possuirá seu princípio ativo mágico – parafraseando Rubens Saraceni -, que é espiritual e correspondente àquele citado anteriormente, mas que atuará fortemente no lado espiritual.
E as manipulações para tratamentos da saúde física, só podem ser promovidas – e bem promovidas – por profissionais de saúde devidamente formados e outorgados, nunca por aventureiros disfarçados de terapeutas, médiuns, espiritualistas etc. Assim como, a manipulação para tratamento espiritual deve ser realizada por pessoas que possuam um conhecimento na área, o que, infelizmente, pouco temos visto atualmente.
Material e espiritual são dois lados de uma mesma moeda. O que está no espírito, nele deve ser tratado, já o que está na matéria, nela deve ser tratado. Prefiro ser repetitivo, para não deixar dúvidas.
Poderia me aprofundar muito mais neste texto, mas, o objetivo é provocar em você uma reflexão inicial e propedêutica.
Reflita, pois, religião e ciência cumprem suas funções quando atuam em seus campos, nunca querendo invadir o da outra. Criar uma guerra, um confronto entre ambas é promover uma luta em que todos perdem, em que ninguém vence, uma verdadeira batalha de vencidos.
Um saravá fraterno!
André Cozta
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