A relação entre estes dois termos [perdoar e desculpar] vem me intrigando há algum tempo. Fato que me tem feito questionar até que ponto eles possuem uma relação direta ou são sinônimos e em quais momentos se torna mais apropriado o uso de um e de outro.
Antes de registrar aqui e dissertar acerca das minhas conclusões, trago a seguir a opinião de um linguista, o professor Flávio Barbosa – docente na Faculdade de Letras da UERJ – (2024):
“Antes de mais nada, preciso fazer uma reflexão sobre sinonímia. Essa relação semântica costuma ser conceituada como correspondência de sentido entre palavras; o problema, entretanto, é que tal efeito raramente é absoluto. As palavras são intercambiáveis até certo ponto, mas sempre há regiões nas quais não é possível fazer substituições. Alguns semanticistas dizem que intercambiamento absoluto entre duas palavras é um desperdício de economia linguística […]
[…] Não há propósito em existirem duas ou mais palavras com precisamente o mesmo conteúdo.
Uma boa maneira de ilustrar esse tipo de relação é a partir da teoria dos conjuntos, na matemática. A relação de intercessão entre conjuntos envolve uma zona de sobreposição, mas não costuma ser o mesmo que sobreposição total de conjuntos. Por exemplo, “carro” e “veículo” podem ser sinônimos, mas há veículos como a bicicleta que não se enquadram como “carro”.
O caso de “desculpar” e “perdoar” é parecido. A princípio, as duas palavras podem ser intercambiadas em uma série de contextos. Entretanto, algumas diferenças podem ser mencionadas de pronto:
>> “desculpar” é palavra mais informal do que “perdoar”. Portanto, em situações mais coloquiais e cotidianas, talvez “perdoar” possa causar estranhamento, soando artificial e pretensioso;
>> “perdoar” marca uma relação notadamente assimétrica entre os que estão em condições de dar e de pedir perdão. É comum pedir perdão a uma divindade, a uma figura de autoridade (um rei, um sacerdote… alguém com muito poder). Nesse tipo de interação, pedir desculpas pode parecer casual demais e o tom pode beirar o desrespeitoso.
Considerando a origem das palavras, “desculpar” é formado por des- + culpar. O sentido etimológico é, literalmente “tirar a culpa”, desfazer a carga de um vício, uma falta, uma imperfeição. Já “perdoar” vem do latim perdōnāre, formado por per- ‘completamente’ + dōnāre ”fazer dom de, fazer entrega de, conceder’. A ideia original é “conceder plenamente”, que interpreto como uma dádiva de boa vontade feita por quem abre mão de qualquer direito à reparação ou à reciprocidade por um crime.
Também na origem, o ato de desculpar é razoavelmente mais corriqueiro… tem um jeito de “deixa disso”, “não vamos brigar por isso”, ou coisa assim. Já no caso de perdoar, fica marcada uma situação de mais gravidade e se reconhece a autoridade do ofendido como credor de um crime, ou de uma falta grave. O perdão é o ato de abrir mão dessa ligação e seguir adiante; é fundamentalmente um ato libertador para o credor e para o devedor — o credor se desapega da ofensa e se dispõe a ir adiante.
Nem sempre esses sentidos etimológicos circulam tão vivos nos usos atuais da língua. Neste caso, entretanto, acho que as ideias originais ajudam a reforçar a gravidade que constitui o principal limite da zona de intercessão semântica entre as duas palavras.
Resumindo: são, sim, dois sinônimos, intercambiáveis em uma série de contextos. Entretanto, perdoar tem uma formalidade, um peso de gravidade e até mesmo uma voz historicamente religiosa que o torna exclusivo em contextos que trazem esses traços marcantes. Por outro lado, os traços opostos podem fazer com que desculpar seja a palavra mais apropriada […]
[…] Com base no que apurei, também poderíamos entender que, até certo ponto, desculpar fosse um jeito de ignorar a falta, “varrer pra debaixo do tapete”, apagar.
Indo por essa perspectiva, perdoar envolveria um processo completo de desapego, desligamento da mácula deixada pelo erro. Não seria desconsiderar uma eventual culpa, mas sim superá-la.”
Tal explicação selou a minha compreensão acerca dos sentidos dessas palavras, mostrando uma relação direta no campo semântico com o que vinha se mostrando como resultado das minhas reflexões.
Bem, se você já conhece o meu histórico concluirá que as minhas reflexões são acompanhadas ou, nesses casos, sustentadas pelo “combo” questionamento/intuição.
Nesse processo reflexivo-intuitivo, foi-me esclarecido que a desculpa, assim como nos é explicado no início desse texto, é algo mais corriqueiro do que o perdão, sendo este segundo concedido por quem tem outorga. Mas, de que outorga estamos falando?
Vamos lá: meus questionamentos começaram a surgir quando, em qualquer situação de falha ou erro meu, pedia perdão à pessoa. Mas também comecei a perceber em situações envolvendo terceiros, em que alguém pedia perdão ou tinha o perdão “concedido” por outrem.
Nessas situações, me era dito mais ou menos isso: “Isso é caso para desculpas, pois o perdão só pode ser concedido por quem tem outorga para julgar.”
Eis o surgimento da outorga! Mas, quem tem outorga para julgar?
No nosso mundo material, os juízes e as juízas são outorgados(as) para isso. Ninguém, habilitado para qualquer outra função dentro do sistema judiciário, possui esta autorização.
Somente eles possuem a tal outorga e, portanto, podem perdoar? No seu campo de atuação na sociedade, no sistema judiciário, sim. Mas, no nosso sistema familiar, pais podem perdoar filhos e vice-versa. Ambos possuem uma ligação promovida por Deus, que se torna eterna a partir do momento em que surge, portanto, os filhos podem perdoar sinceramente e sem qualquer exagero ou equívoco aos seus pais, em casos necessários. O mesmo ocorre com os pais, que receberam também outorga de Deus e a responsabilidade de guiarem a caminhada dos filhos e filhas até que tenham condições de conduzirem as suas jornadas por si.
Agora chegamos no ponto em que eu desejava quando iniciei a escrita deste texto.
Em situações mais corriqueiras, nas relações sociais, familiares entre parentes (irmãos, primos…), no trabalho, nos estudos, nos círculos religiosos etc., há situações em que se possa perdoar ou somente a desculpa pode ser concedida por alguém a outrem?
Afinal, foi observando situações semelhantes a essas descritas no parágrafo anterior, que me surgiu a dúvida e que passei a receber os esclarecimentos de mentores espirituais.
E tudo ficou mais claro para mim, quando um mentor espiritual me disse: “Na relação entre dois colegas de trabalhos, por exemplo, ou até mesmo entre dois irmãos na fé religiosa [vou me deter a essa, por ser o seu campo de investigação mais profundo, meu filho], ocorrem muitas vezes ofensas, exageros em atitudes ou ações, palavras mal colocadas e assim por diante.
Então, vamos a um exemplo claro – disse-me ele -. Imaginemos que duas pessoas que frequentam o mesmo terreiro umbandista divirjam em algum aspecto teológico ou litúrgico. Uma delas, irritada por ser contrariada ou por ver um pensamento diferente do seu à sua frente, no mesmo ambiente, acaba ofendendo-a. Vamos a duas hipóteses:
- Ela ofende seu irmão na fé com impropérios, estando dentro de um ambiente sagrado;
- Ela ofende aos orixás ou guias espirituais [ou até mesmo a família] do seu irmão na fé;
Em ambos os casos, estejam ou não no ambiente sagrado, aquela pessoa cometeu um ato muito grave. Ela pode receber o perdão da pessoa que foi o alvo da sua ofensa ou agressão? Não pode. E exatamente porque aquela pessoa não possui outorga de julgamento; ela pode, no máximo desculpá-la.
E que fique claro que ela não possui outorga para julgar, porque ela ainda está em uma condição [encarnada e em evolução] em que poderia revidar com algo parecido. Isso seria similar a um juiz injusto, que ao invés de aplicar penas dentro da Lei, utiliza-se, por exemplo, da vingança.
Só pode perdoar quem tem outorga para julgar, ou seja, quem já se elevou desse patamar [no nível terra, utilizando-me de um sentido figurado] e, numa situação assim, não se sente atingido, mas percebe que a outra pessoa ofendeu a algo muito maior, sagrado.
Então, trocando em miúdos, somente Deus e Suas Divindades [entre elas, os Orixás] possuem não somente outorga, mas condições de perdoar a tudo e a todos.”
Após esta aula intuitiva e espiritual, compreendi que, em nosso dia a dia, até podemos verbalizar ou receber a palavra “perdão”, mas, em verdade, só temos condições de desculpar aos nossos semelhantes e por eles sermos desculpados
Assim, tanto a lição léxico-semântica quanto a do Caboclo condizem, encontram-se e nos trazem mais um ensinamento importante. Vamos refletir!
Um saravá fraterno!
André Cozta
ENTREVISTA:
BARBOSA, Flávio. Entrevista concedida a André Cozta. Rio de Janeiro, 16Jun. 2024.
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