Filosofia: QUESTÕES SOBRE A ALMA – NO FÉDON DE PLATÃO

A seguir, dois trechos breves deste diálogo platônico que acontece entre Sócrates e seus discípulos, no cárcere, no dia da sua execução:

“[…] Os amantes do conhecimento”, disse, “percebem que quando a filosofia apodera-se de suas almas, estas estão encarceradas e ligadas ao corpo, sendo compelidas a considerar as realidades como se através de barras da prisão e não por si mesmas, com sua visão livre, estando chafurdadas na completa ignorância. E [a filosofia] percebe que o que há de mais terrível nesse encarceramento é ele ser causado por estes apetites, de modo que o encarcerado contribui para seu próprio encarceramento. Os amantes do conhecimento, assim, tal como digo, percebem que a filosofia, apoderando-se da alma quando ela se acha nesse estado, a estimula suavemente e procura libertá-la, mostrando que a visão e a audição, bem como os demais sentidos, estão repletos de ilusão, e incita-a afastar-se deles salvo no que seu uso seja inevitável; exorta-a a recolher-se e concentrar-se em si mesma, e em confiar exclusivamente em si mesma e em seu próprio pensar abstrato do ser abstrato; a crer que nenhuma verdade há naquilo que ela vê graças a outros meios, variáveis em função da variedade dos objetos em que aparece, uma vez que todas as coisas desse tipo são visíveis e apreendidas pelos sentidos, ao passo que somente a própria alma vê aquilo que é invisível e apreendido pela inteligência […]”. (PLATÃO; 2016, P. 58).

Sócrates prossegue dizendo que a alma do verdadeiro filósofo crê que não deve se opor a essa libertação, conservando-se distante o quanto possível de prazeres, desejos, dores e temores. Tais sensações ou desejos violentos não se limitam, segundo o filósofo ateniense, a causar males que se poderiam esperar, como doença, perda de dinheiro por paixões, mas também o maior de todos os males que alguém pode experimentar, mesmo não levando-o em consideração. Ao ser questionado por Cebes, seu interlocutor, sobre qual seria este mal, Sócrates responde que tal mal se encontra na interpretação do ser humano, que crê que este mal foi produzido pelo que lhe é visível. E seguindo no seu processo maiêutico, Sócrates questiona Cebes, que busca acompanhar seu raciocínio, se, em tal processo, não é neste momento em que a alma se encontra mais presa ao corpo.

Seu interlocutor questiona: “Como assim?”. Ao que o filósofo responde:
“Por que todo prazer ou dor produz por assim dizer, um cravo adicional que prende firmemente a alma ao corpo, a tornando corpórea, de modo que ela imagina como verdadeiro aquilo que o corpo afirma ser verdadeiro. Como partilha das mesmas crenças e prazeres do corpo, a alma necessariamente adota igualmente os mesmos hábitos e modo de vida, tornando-se sempre incapaz de partir pura para o Hades, tendo que partir sempre contaminada pelo corpo; o resultado é ela não tardar a voltar a um outro corpo e neste desenvolver-se, como uma semente que foi semeada. Consequentemente não participa da comunhão com o divino, o puro e o uniforme.” (PLATÃO; 2016, P. 59).

Para que possamos analisar estes trechos do diálogo platônico, é de fundamental importância que esclareçamos um aspecto primal do nosso trabalho e que nos serve de base sustentadora: nossa Filosofia tem como primazia o reconhecimento de todos os movimentos divinos na Criação. Deus é a Origem de tudo e de todos, masculino e feminino em si, irradiando, o tempo todo, tais aspectos (bem como, tantos outros) de si por toda a eternidade.

Portanto, a partir dos nossos estudos acerca de Deus – Origem ou Origem Divina criamos uma definição que corre distante de muitos conceitos religiosos constituídos ao longo dos tempos. Para que iniciemos uma análise da alma na visão socrática, faz-se necessário introduzirmos dois conceitos basilares, para, em seguida, apresentarmos o nosso conceito de Origem e, consequentemente, o de espírito.

Para Aristóteles (apud KRASTANOV, 2013, p. 148): “ Uma vez que todo movido deve ser movido por um movente, que, por sua vez é movido por outro, e, este por outro e assim por diante. Nesse caso deve-se reconhecer a existência de um primeiro movente “.

A partir deste conceito aristotélico, entendemos que há uma Origem de todo o universo e todos os seres. E complementamos o nosso raciocínio com a definição de Rubens Saraceni (1993, p. 17): ” A energia divina é original e anterior a tudo. Ela se espalha por todo o Universo, imantando a tudo e a todos. Um átomo contém essa energia, uma pessoa também a contém, todas as galáxias são inundadas por essa mesma energia. Nada limita sua ação, pois tudo o que existe foi criado a partir dela. A energia divina é fonte de tudo o que está contido no Universo. Quando dizemos que o Universo é o corpo divino, é porque assim o é. Nada existe sem Deus, e tudo o que existe está contido n’Ele. Se observarmos longínquas galáxias, entenderemos o sentido do infinito ser divino. Umas são espiraladas, outras são aglomerados etc., mas todas têm algo em comum: contém estrelas, sóis, planetas, satélites, poeira cósmica etc., etc, etc. No Universo mudam as aparências, mas a essência é sempre a mesma. Isto se deve ao fato de haver apenas uma Origem. Tudo existe em função da energia divina, que a tudo origina, vivifica e sustenta. Ela é sutil e poderosa, é geradora incessante de novos mundos; é sustentadora de tudo o que sempre existiu, e jamais deixará de existir. Ela sustenta a harmonia do Universo, assim como da menor de suas partículas”.

A partir destas definições aqui expostas, desenvolvemos dois conceitos (de Origem e de espírito). Iniciamos apresentando o nosso conceito de Origem: “Entendemos Deus como a Origem de tudo e de todos e, assim sendo, baseados nas definições de Aristóteles e Rubens Saraceni (de primeiro motor imóvel e energia original, respectivamente), compreendemos esta Origem como animadora da vida, seja de galáxias, de planetas, de animais, dos vegetais, da água, de tudo o que manifesta vida, inclusive, dos seres humanos (COZTA, 2019)”.

Agora apresentamos o nosso conceito de espírito: “A partir das energias advindas da Origem, surgem espíritos que atuam animando e sustentando a vida humana corpórea. Estes espíritos são forças geradas por forças-pensamento advindas da Origem” (COZTA, 2019)

Com estas definições, quem chega até aqui já pode compreender o motivo pelo qual escolhemos este texto de Platão e os trechos explicitados para que possamos refletir acerca da alma.

Sócrates, em sua explanação (e como se mostra comum dentro do ideário platônico), apresenta-nos uma concepção de alma advinda do mundo das ideias e que, superior ao corpo, quando a ele se amarra, passa a manifestar em si todas as suas imperfeições. A alma presa ao corpo pode e deve encontrar na filosofia a libertação destas amarras que manifestam apetites ilusórios e afastam-na, cada vez mais, da realidade.

Por que o mundo manifestado apresenta-nos ilusões compulsórias circulares. Mas, assim sendo, tendo a alma superior presa ao corpo inferior, como podemos nos libertar? Se há uma prisão “obrigatória”, cumprimos uma sentença? Qual a nossa melhor alternativa?

É importante salientarmos que este diálogo, que se passa no último dia de vida de Sócrates, se dá pelo fato do filósofo tentar refutar o desejo de seus discípulos – que tentam convencê-lo a não aceitar a sentença de morte e optar por partir de Atenas -, convencendo-os de que a morte seria, ali, naquela situação, o melhor negócio para ele. Pois encontraria, finalmente, a libertação para a sua alma.

Sócrates ensina aos seus discípulos que a alma, pelo fato de ter habitado o corpo material, presa a ele, absorve hábitos “corpóreos” e quando retorna ao Hades (mundo dos mortos) segue manifestando-os. Por isso precisa transmigrar para outros corpos. Eis, na obra de Platão, a teoria da Metempsicose, tão bem conhecida hoje, por nós, como “ciclo reencarnatório”.
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Platão, por intermédio de Sócrates, nos mostra no Fédon que a alma deve buscar constantemente a libertação. Mas, o que seria esta libertação se, afinal, após um período no Hades, retornaremos ao cárcere do corpo material? De que forma pode-se explicar tal fenômeno que, indiscutivelmente, é natural para o espírito humano?

Pois os nossos estudos nos trazem a conclusão de que a metempsicose, transmigração ou, usando a nossa própria linguagem, o ciclo reencarnatório, possui função estratégica no aperfeiçoamento da alma e do espírito em sua caminhada evolutiva eterna.

Somos uma escola filosófica e de mistérios divinos com base no sexto aspecto manifestado por Deus, o da Evolução. Este predicado divino nos move o tempo todo e é por intermédio desta faixa que servimos à nossa Origem.
Tal interpretação pode trazer muitos questionamentos àqueles que buscam compreender as obras filosóficas, especialmente, neste caso, de Platão, mas, temos um embasamento filosófico próprio no qual nos apoiamos e que nos permite compreender tais escritos de forma mais profunda.

Chaves interpretativas fundamentais foram-nos deixadas por alguns pensadores. E Platão foi, é e será, ainda por muito tempo, uma peça fundamental nessa engrenagem e em todo o processo. A alma humana que transmigra, não somente entre corpos materiais, mas também entre reinos, dimensões e planos neste nosso planeta, busca a cada experiência vencer maiores desafios.

Um olhar filosófico mais profundo se dá, de fato, quando aquele que busca o entendimento ultrapassa as barreiras do sensível mergulhando no infinito oceano da percepção. Por que razão e percepção podem andar de braços dados, apesar de muitos apregoarem o oposto.

A percepção espiritual é a prova cabal não só da existência, como da concretude da alma e da sua importância central para a vida manifestada. Sem alma não há pensamento, não haveria Sócrates, Platão, Aristóteles. Raciocinemos: estes grandes intérpretes da alma nos mostraram claramente com suas filosofias que pensamento é alma, e que alma é vida.

O “megafone” socrático a nós trazido por Platão quer nos mostrar que a alma é imperecível e está ligada ao pensamento, quando nos diz que ela é inteligente ou a própria inteligência manifestada. A perecibilidade corpórea da matéria nos mostra não somente a imperfeição, mas os limites espaço-temporais desta criação divina com funções determinadas para a nossa evolução.

Tal interpretação filosófica pode incomodar algumas formas de pensar, mas traz alguns questionamentos. Vejamos:

– Se assim ocorre, onde está o Deus masculino, viril, punidor?
– Se assim ocorre, onde está a providência divina que castiga os maus?
– Em verdade, onde estão o bem e o mal?

Leiamos e releiamos os trechos aqui destacados do Fédon. E com disposição, leiamos a obra completa. Nela, Sócrates insiste em nos mostrar que os tais “bem” e “mal” encontram-se em nós mesmos, quando nos apresenta a necessidade da transmigração ou da reencarnação para o nosso aperfeiçoamento. Encarnamos, desencarnamos, reencarnamos e assim vamos nos aperfeiçoando, cumprindo o objetivo de aperfeiçoar o “bem” e eliminar o “mal”.

A reencarnação tão atual em tantas escolas espiritualistas já era entendida e explicada por Platão, por intermédio de Sócrates, há mais de dois mil anos. O autor nos traz em suas obras tantas chaves interpretativas acerca da existência humana e de Deus que poderíamos iniciar diversos cursos tendo como base a sua obra.

Para concluir este texto: Sócrates nos ensina, no texto de Platão, que a alma é a essência da vida, da manifestação divina como um todo. Não somente da vida humana, mas de toda a vida manifestada ao nosso redor. Tudo tem vida e possui alma. Mas onde ele diz isso claramente? Mais uma vez, reitero: Platão nos traz chaves interpretativas metafísicas… leiamos, releiamos e, com o suporte da razão, utilizemo-nos da interpretação aliada à nossa percepção.

O próximo texto desta série analisará a Alma em Aristóteles.

André Cozta

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GRAMSCI, Antonio. Cuaderno 11 (XVIII) 1932-1933: Introducción al estudio de la filosofía. In: GRAMSCI, Antonio. Cuadernos de la cárcel. Tomo 4: Cuadernos 9 (XIV) 1932; 10 (XXXIII) 1932-1935; 11 (XVIII) 1932-1933; 12 (XXIX) 1932. Traducción de Ana María Palos. Ciudad de México: Ediciones Era, 1986.

PLATÃO. Fédon (Ou Da Alma). Tradução de Edson Bini. 1.ed. 1ª reimpressão São Paulo: Edipro, 2016.

ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução de Edson Bini. 2.ed. São Paulo: Edipro, 2012.

KRASTANOV, Stefan Vasilev, História da Filosofia Antiga: Caderno de Referência de Conteúdo. Batatais: Claretiano, 2013.

SARACENI, Rubens. O Livro das Energias. São Paulo: New Transcedentalis, 1993.

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