Filosofia: QUESTÕES SOBRE A ALMA EM ARISTÓTELES

Prosseguindo com o nosso trabalho de investigação filosófica acerca da alma, buscamos em Aristóteles, na sua obra “Da Alma (De Anima)”, a concepção deste clássico filósofo grego acerca do tema em questão. Porém, faz-se necessário introduzirmos e compreendermos, para que possamos seguir com a nossa dissertação, seus conceitos de Ato e Potência, constantes no capítulo 8 do Livro IX da sua obra “Metafísica”:

“[…] O que quero dizer é o seguinte: que a matéria, a semente e aquilo capaz de ver, que são potencialmente um homem, um cereal e a visão, mas não em ato, são anteriores no tempo ao indivíduo humano, a este cereal em particular e ao sujeito que se vê que já existem em ato, mas são posteriores no tempo a outras coisas existentes em ato a partir das quais foram gerados. De fato, do potencial o atual é sempre gerado por alguma coisa existente em ato, por exemplo, o homem pelo homem, o instruído pelo instruído: há sempre um primeiro motor e aquilo que desencadeia o movimento já existe em ato“. (ARISTÓTELES; 2012, P. 239-240)

Tais definições são fundamentais para que possamos mergulhar na filosofia aristotélica. Utilizaremo-nos, a fim de melhorar a compreensão, de um exemplo corriqueiro no ensino da filosofia acerca deste tema: ato é a manifestação atual do ser, enquanto potência consiste na capacidade de ser (possibilidade de vir a ser). Uma semente é ato enquanto o que já é, ou seja, uma semente, mas é em potência uma árvore; esta árvore é ato enquanto árvore mas é em potência uma mesa ou cadeira. A semente, ato enquanto semente citada no início do nosso exemplo, foi potência enquanto essência (utilizando-se de um termo teológico umbandista) até tornar-se ato (semente).

Com estes conceitos bem compreendidos, podemos seguir em frente analisando a alma em Aristóteles. Obviamente, aqui o faremos de forma introdutória, mas, quem se interessar pode buscar aprofundamento estudando esta sua maravilhosa obra. Daremos início com o que nos escreve este filósofo na abertura do capítulo 1 do Livro I de “De anima”:

“Sustentamos ser todo conhecimento algo nobre e valioso, porém um de seus tipos, seja por seu rigor, seja por sua maior dignidade e caráter mais admirável de seu objeto – pode superar um outro. Assim, em função de ambos esses motivos, somos levados a colocar a investigação da alma em primeiro lugar. Seu conhecimento parece muito contribuir para aquele da verdade em geral e, sobretudo, para nosso entendimento da natureza, na medida em que a alma é, em certo sentido, o princípio da vida. O propósito de nossa investigação é examinar e discernir sua natureza e substância e, depois, suas propriedades, algumas das quais são tidas por estados passivos (afecções) da própria alma, ao passo que outras são consideradas vinculadas ao ser vivo devido à presença dela“.(ARISTÓTELES; 2018, P. 41)

O filósofo grego introduz sua análise valorizando o conhecimento, mas nos esclarece que há variações ou, para que possamos melhor compreender, “variados tipos de conhecimento”. E diz que é necessário que coloquemos a investigação acerca da alma como primeira, pois, ela é o princípio de tudo o que é animado no mundo em que vivemos. Afirma ser a alma o princípio da vida e anuncia que sua investigação se inicia pela natureza da mesma e prossegue por suas propriedades, algumas delas tidas como afecções (alterações) da própria alma. Estas afecções só podem estar vinculadas aos seres vivos por conta da presença deste princípio da vida, ou seja, a alma.

Tendo o pensamento de Aristóteles introduzido acerca da alma, destacamos o que nos diz o filósofo estagirita no capítulo 1 do Livro II de “De Anima”:

“Assim, a alma é o ato primeiro de um corpo natural que possui a vida em potência, o que diz respeito a todo corpo organizado. As partes das próprias plantas são órgãos, ainda que de extrema simplicidade: por exemplo, a folha protege o pericarpo, ao passo que este protege o fruto; as raízes das plantas correspondem às bocas dos animais, porque umas e outras absorvem o alimento.

Se for o caso, portanto, de apresentar uma definição geral aplicável a todos os tipos de alma, diremos que esta é o ato primeiro de um corpo natural organizado. Assim podemos destacar a questão de se a alma e o corpo constituem uma unidade: seria como se indagássemos se a cera e sua configuração constituem uma unidade, ou (em termos gerais) a matéria de uma coisa e aquilo de que é matéria. De fato, o ‘uno’ e o ‘é’ têm muitos sentidos, mas o sentido soberano é o do ato. Eis portanto, o que é de uma maneira geral a alma: uma substância no sentido de noção, entendida como a essência própria deste ou daquele corpo determinado.

[…] Na sequência resta aplicar essa teoria às distintas partes do corpo. Supondo que o olho fosse um ser vivo completo, a visão seria sua alma, pois a visão é a substância do olho no sentido de noção. De fato, o olho é a matéria da visão, e na hipótese da remoção desta não há mais um olho, a não ser por homonímia – não mais do que um olho de pedra numa estátua, ou uma figura pintada. É necessário, então, estender o que vale para uma parte à totalidade do corpo vivo: a relação existente entre a parte, do prisma da forma e essa mesma parte, do prisma da matéria, é reencontrada entre o todo da faculdade sensitiva e o todo do corpo detentor de sensibilidade tomado como tal.

Devemos compreender, além disso, que não é o corpo que ainda a retém; sementes e frutos são corpos potencialmente desse tipo. Por conseguinte, enquanto a vigília é ato numa acepção que corresponde ao cortar e ao ver, a alma é ato no sentido que corresponde à visão e ao poder no instrumento; o corpo corresponde ao que é em potência; tal como a pupila somada à capacidade visual constitui o olho, a alma somada ao corpo constitui o ser vivo“. (ARISTÓTELES; 2018, P. 72-73)

“Assim, a alma é o ato primeiro de um corpo natural que possui a vida em potência, o que diz respeito a todo corpo organizado“ . Destacamos e repetimos o início da citação, para que possamos entender o cerne do pensamento aristotélico nesta questão. A alma é o princípio animador de um corpo organizado, trocando em miúdos, princípio animador da vida. Exemplifica com uma relação entre a visão e o olho, sendo a primeira, alma animadora daquele corpo (o olho). Define a alma como noção ou substância, essência de um corpo organizado (podemos entender como corpo vivo e animado).

A alma é ato e, enquanto forma, anima e dá vida à matéria. Se na vigília podemos considerar o corpo como ato (ou, ao menos, como partícipe fundamental no ato), a alma é ato por dotar o instrumento (corpo) de poder, ou seja, animá-lo.

Vejamos ainda este trecho de “De Anima”, ainda no livro II capítulo 1:

“ Disso pode-se claramente depreender que a alma é indissociável do corpo ou, ao menos, que certas partes suas são, se sua natureza for divisível; de fato, o ato de algumas dessas partes corresponde ao ato dos órgãos correspondentes. No caso de outras partes, porém, há dissociabilidade porque não constituem, de modo algum, os atos de quaisquer órgãos corpóreos “ . (ARISTÓTELES; 2018, P. 73-74)

Com relação a este ponto, inicio destacando que respeitamos todo o pensamento deste grande mestre da filosofia, baseamos-nos em muitos dos seus ensinamentos para podermos entender, inclusive, religião e ciência. Aristóteles foi filósofo, físico, astrônomo – estudou os corpos celestes em um momento em que não se possuía equipamento algum para tais investigações -, biólogo e botânico –dissecou plantas e corpos de animais para aprofundar seus estudos-. E foi um grande intérprete das coisas divinas, tanto que, em sua célebre obra “Metafísica” encontramos uma teologia sólida que serviu durante muito tempo (e ainda serve) de base para muitas filosofias religiosas e espiritualistas.

Por isso, compreendemos tudo o que estudamos da filosofia antiga dentro do contexto histórico-espácio-temporal em que se encontravam, e buscamos trazer tais conceitos para a nossa realidade, no início do século XXI, realizando sempre este “balanço” entre as épocas.

Como já podemos apreender a partir de diversos estudos acerca do “espiritual”, ao longo dos tempos, especialmente no tratado teológico trazido a nós pelo Mestre Rubens Saraceni, o espírito (ou a alma) não se mostra indivisível. É, dentro do processo evolutivo, consequência da nossa origem mental-consciencial que vai, aos poucos, constituindo-se e assumindo a forma espiritual para que possamos evoluir como espíritos, fortalecendo e cristalizando-nos como consciências -o que somos na Origem e seremos para todo o sempre- .

A forma espiritual (alma) anima-nos enquanto vida espiritual humana e pulsante em muitas realidades durante a nossa caminhada nas realidades paralelas à material e também no corpo carnal para que possamos cumprir algumas dessas etapas nas vidas na matéria. Poderíamos, inclusive, ter adentrado na teoria aristotélica acerca da forma e da matéria (hylemorfismo), mas, deixaremos este estudo para uma breve oportunidade.

Ainda vemos nestas citações da obra De Anima, aqui colocadas, a seguinte afirmação aristotélica: “De fato, o ‘uno’ e o ‘é’ têm muitos sentidos, mas o sentido soberano é o do ato”. Como esclarecimento: aqui, Aristóteles tem o Uno como substância e o “é” como gênero; destaca o ato como sentido soberano. Podemos perceber, mais uma vez, que o filósofo estagirita valoriza a união entre corpo e alma (matéria e forma = hylemorfismo*), diferentemente de seu mestre, Platão – analisado no primeiro texto desta série -, que com seu idealismo valoriza e apregoa o dualismo entre alma (mundo das ideias) e corpo/matéria (mundo sensível).

Platão valoriza e prioriza a alma. Aristóteles não a nega, mas enxerga-a e a estuda a partir da matéria.
Na nossa visão, são análises realizadas sob prismas diferentes, afinal, entendemos a existência da alma e sua eternidade na Criação, o que condiz com o que encontramos no ideário platônico. Sabemos que o corpo material é limitado, perecível e possui “prazo de validade”, mas, por outro lado, é fundamental para a vivenciação das nossas experiências na carne. Experiências estas fundamentais para a evolução e ascensão do espírito humano.

Entendemos que o corpo tenha um valor bem menor do que muitos materialistas ou “escravos da matéria” a ele atribuem, porém, possui valor fundamental para a nossa evolução espiritual –e bem superior ao valor a ele atribuído por aqueles que o desprezam-, pois nos propicia nas várias paragens pela matéria, experiência e aprendizados singulares.

E talvez isso seja o que Aristóteles tenha tentado nos mostrar, em contraponto (ou em complementação) à filosofia platônica.

Buscamos em nossos textos trazer aos umbandistas, espiritualistas, e demais interessados, contrapontos e combinações entre a tradição filosófica e a Teologia de Umbanda. Por isso, procuramos utilizar uma linguagem simples e acessível.

No próximo texto, concluiremos nossa análise introdutória sobre alma em Aristóteles, analisando seu pensamento acerca dos movimentos da alma.

André Cozta

* Hilemorfismo ou hilomorfismo, em filosofia, é a teoria elaborada por Aristóteles e desenvolvida na filosofia escolástica, segundo a qual todos os seres corpóreos são compostos por matéria e forma. Tem grande impacto na antropologia filosófica. Matéria=Potência Forma=Ato.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução de Edson Bini. 2.ed. São Paulo: Edipro, 2012.
ARISTÓTELES. Da Alma – De Anima. Tradução de Edson Bini. 1.ed. São Paulo: Edipro, 2018.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Hilemorfismo – Consulta em 20/05/2020

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