ESPÍRITO [ESSÊNCIA] E ALMA [“MISCIGENADA”] NA FILOSOFIA DE RUBENS SARACENI

 

Na obra O Domínio dos Sentidos da Vida – A Preparação de Sócrates, de Rubens Saraceni, encontramos um relato da preparação pela qual o espírito do grande filósofo grego passou antes do seu nascimento em Atenas. Podemos conhecer um Sócrates antes de Sócrates que, conduzido a outras realidades espirituais é preparado para a missão vindoura e que ecoa até hoje como base e inspiração filosófica e, também, na história da humanidade.

Nessa existência, chamado Simão Beir, teve sua família inteira dizimada em um ataque sangrento desferido por exércitos assírios contra o seu povo hebreu. E como único sobrevivente naquela chacina, partiu em busca de um novo sentido em sua vida.

É orientado por tutores, como os senhores Anjos da Morte, da Vida, das Trevas e da Luz; sendo direcionado por eles, enfrenta uma jornada de iniciações nos sete sentidos da vida.

Pode-se dizer que Saraceni nos traz, de forma romanceada, a preparação espiritual de Sócrates para a sua tarefa em solo grego, que viria a moldar o pensamento racional do Ocidente.

Reproduziremos a seguir, trecho desta obra em que lhe é esclarecida a diferença entre espírito e alma, algo que ainda provoca muitas discussões entre umbandistas e espiritualistas em geral. Vejamos:

 

[…]- Ótimo, Simão Beir! Você Já sabe distinguir a diferença entre espírito imortal e alma.

– Ainda não vejo isso com clareza, mas sei que há uma diferença muito grande entre ambos. Fale sobre ela para que eu possa lançar os alicerces do seu espaço no meu espaço, meu anjo.

– Sim, disso lhe falarei, olhos que vislumbram!

O espírito imortal é a centelha divina emanada do divino Criador e que vaga no Universo, que é o seu corpo divino, tal como as células sangüíneas de um corpo humano, que vão se multiplicando. Quando já cumpriram suas funções vitais, dão lugar a outras mais novas e transformam-se em novas formas de energias, sem que com isso deixem de existir, pois transformação não é morte, mas tão somente mutação para um estado vibratório diferente do anterior.

Assim como energia sempre é energia, e dor sempre é dor, então só existe diferença na intensidade vibratória e não na quantidade. Logo, intensidade é sinônimo de qualidade e isso quer dizer que só um espírito altamente qualificado pode almejar a quantidade e não o contrário. Logo, só um espírito que vibra intensamente sofre transformações que o qualificam a multiplicar-se em muitos outros, tal como uma célula do corpo humano. E assim, ele multiplica-se e transmuta-se em outra energia, deixando o seu espaço para que outro o ocupe e possa ocupar outro espaço, já maior.

Quanto à alma, é algo diferente do espírito e muitos a confundem com ele, pois desconhecem que ela é só o estado do ser ou seu grau vibratório. Alma é a vibração acumulada num ser imortal emanado do seu divino Criador, Simão Beir. Todo espírito possui uma alma, que é a soma de suas evoluções nos muitos estágios já vivenciados por eles. Tal como as uvas da tua videira. são os espíritos humanos! Umas mais doces, outras mais azedas. Umas maiores, outras menores. Umas mais acentuadas na sua cor, outras mais opacas. Etc., etc., etc. Logo, todas são uvas, mas de aparências diferentes aos olhos do bom observador, de sabores diferentes ao bom degustador e de paladares diferentes ao bom apreciador. Assim como necessitam cuidados diferentes do bom viticultor. O espírito é a videira e a alma é o tipo de uva que essa mesma videira dá ao fim de cada período gerador. Uma videira pode produzir uvas pequenas e doces. Já outras podem produzir uvas grandes, porém azedas. Pequenas videiras podem produzir cachos grandes, suculentos e doces, e grandes videiras podem produzir exatamente o contrário, Simão Beir!

Então tens na videira o espírito imortal e nas uvas a expressão de sua alma. Tens na uva o espírito imortal e nas qualidades dela, sua alma, pois uma uva grande não significa que seja doce se os nutrientes absorvidos pelas raízes tenham sido ácidos, ou o calor absorvido por suas folhas tenha sido menor ou maior que o necessário ao seu bom amadurecimento, ou a água em maior ou menor quantidade para a boa geração delas, ou o vento mais suave ou inclemente à sua ideal oxigenação.

Nesse momento Simão voltou a inquirir do Anjo da Morte.

– Estás querendo dizer-me que o meio é o responsável pela formação da alma de um espírito humano?

– Sábio, Simão! Como poderias ocupar teu espaço se não soubesses disso? Como entender o que tenho a lhe mostrar e explicar, sob a luz da lei e da vida, se disso não tinhas consciência? Como lhe mostrar espíritos humanos, que com humanos não se parecem, pois suas almas atrofiaram-se ou deram-lhes aparências não humanas? Como mostrar a forma sem que pudesses distingui-la da aparência?

Espírito é a centelha imortal que torna cada ente humano em um ser igual a todos os seus semelhantes, e alma é o acúmulo de vivenciações, boas ou ruins, de cada ser imortal que o torna tão diferente dos seus semelhantes.

Logo, o espírito é a igualdade na forma, e a alma é a diferenciação na aparência.

O espírito é a centelha imortal irradiada pelo divino Criador, a mover-se na imensidão dos Universos, e a alma é o acúmulo de vivenciações absorvidas na longa jornada do espírito.

– Mas, e quanto à aparência do corpo carnal?

O corpo é só um meio, e como tal, só uma aparência e nada mais Não importa a aparência de um ser humano se o seu espirito tiver uma alma virtuosa a animar suas emoções. Pessoas belas aos teus olhos carnais podem causar-lhe dores ou sofrimentos. Assim como pessoas não belas aos teus olhos carnais podem trazer-lhe muitas alegrias no seu dia a dia se olhá-las com os olhos do espírito. Medite sobre essa verdade, Simão Beir! Tire dela tudo o que precisares para viver entre teus iguais na forma, mas diferentes nas aparências.

– Sim, isso é a verdade das verdades, meu anjo! […] (SARACENI; 2010, P. 21-22)

 

Neste texto, o autor nos traz, mais uma vez, conceitos e definições esclarecedores acerca de dúvidas que sempre pairaram nas discussões entre umbandistas e espiritualistas em geral. Até mesmo em textos filosóficos, podemos notar uma confusão entre aquilo que pode definir alma e espírito; invariavelmente são tratados como sinônimos, talvez numa forma simplificadora, devido às incertezas na conceituação.

Porém, se entendermos, como nos dizem Deleuze e Guattari em O que é a Filosofia?, que a filosofia é a arte de criar conceitos, perceberemos que, por intermédio de uma ontoteologia [ou da teologia umbandista, mais precisamente], Saraceni nos traz (por intermédio da sua psicografia) conceitos filosóficos e definições cunhadas por Mestres da Luz e do Saber, estudiosos da ciência divina e que, certamente, possuem uma visão bem mais ampla do que a nossa, meros espíritos encarnados.

Então, temos assim: o espírito é a essência, o ovoide, a centelha criada e irradiada por Deus originalmente e que vai percorrendo realidades, universos, planos e dimensões, evoluindo até que possa chegar ao estágio reencarnatório [no caso específico dos espíritos imantados com o fator humano, que é o nosso]. Já a alma é o resultado do acúmulo de vivenciações, que vão sendo absorvidas pelo espírito ao longo da jornada. É aquilo que, por aqui, definimos como “miscigenação” do espírito.

Encontramos nos dicionários a definição de miscigenação como: ação, processo ou resultado da reprodução entre pessoas de grupos étnicos diferentes ou como mistura de elementos de diferentes etnias, religiões, arte [e culturas], e que vão originar um terceiro elemento.

Bem, espero que fique bem claro a você, que até aqui chegou, que essa definição criada por nós, para a alma, é uma analogia, portanto, não deve ser interpretada literalmente. O seu conceito, nos dicionários, nos serve como direcionador a fim de que possamos entender por que o adaptamos aqui.

A explicação é bem simples. Uma miscigenação analisada sociologicamente traz os traços e características já descritas nos parágrafos anteriores. Nela, os elementos precisam cruzar-se entre duas pessoas, especialmente se falarmos, analisando a realidade brasileira, de caboclo [ou mameluco] – miscigenação de nativos brasileiros (índios) e brancos (europeus), de mulato – miscigenação de negro com branco (europeu) e de cafuzo – miscigenação de negro com nativo brasileiro indígena.

Porém, a “miscigenação” por nós aqui cunhada traz uma característica peculiar de “auto miscigenação”.

Exatamente porque não ocorre no cruzamento de duas pessoas ou de dois espíritos. Sim, ela ocorre na convivência, na experiência, na experienciação, na experimentação e na vivenciação, a cada realidade pela qual passamos em espírito e na matéria.

E o ciclo reencarnatório, com as nossas variadas experiências neste mundo em que nos encontramos atualmente, é fundamental para a formação da alma.

Por isso, para nós, esse conceito específico e peculiar de “miscigenação” é fundamental para compreendermos a nós mesmos, enquanto espíritos, transmutados em alma.

A alma, pensada e vista dessa forma, nos leva ao movimento, pois, sem ele [o movimento], ela [a alma] não seria possível; seríamos espíritos [essências, centelhas] estagnados. E a evolução não teria sentido algum, ou, melhor dizendo, não existiria.

Tal relação intrínseca entre alma e movimento nos remete a Aristóteles, filósofo grego clássico que contribuiu muito em seus escritos na busca da compreensão acerca da alma e, também, do movimento [ou dos movimentos].

Assim, espero que você, umbandista ou espiritualista, reflita acerca desses conceitos e, a partir deles, tenha mais clareza quando pensar ou se referir ao espírito e à alma.

Seremos eternamente espíritos pois, aquilo que somos na essência nunca deixará se ser ou existir [afinal, somos imortais], mas também somos almas em eterna transmutação, transformação e evolução. Então, a Alma é quem traz a beleza real ao Espírito, para que este se mantenha firme, constante e estável na eternidade evolutiva.

Reflita muito e fique com o nosso saravá fraterno!

 

                              REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DELEUZE, Gilles; GUARRARI, Félix. O que é a Filosofia? Trad.: Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 1992.

SARACENI, Rubens Saraceni. O Domínio dos Sentidos da Vida: A Preparação de Sócrates. São Paulo: Madras, 2010.

 

 

 

 

 

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