Aparelhamento é um termo que se aplica quando o controle de algum órgão ou setor da administração pública é tomado por representantes de determinado grupo de interesses corporativos ou partidários, mediante a ocupação de postos estratégicos das organizações estatais, colocando-as a serviço dos interesses daquele grupo.
Não é nosso foco discutir como isso se dá na administração estatal, na política e similares, mas entender como esse movimento vem se mostrando, na contemporaneidade, na Umbanda.
Vejamos um exemplo simples – fora do contexto da política partidária – para, em seguida, adentrarmos ao cerne do nosso pensamento: Um determinado grupo de taxistas da sua cidade resolve se apossar politicamente da associação municipal da categoria. Então, o grupo de taxistas da zona norte cria um estratagema político e, chegando ao poder na associação, sobrepõe-se ao grupo de taxistas da zona sul, bem como, aos de outras regiões.
Com a ascensão do grupo, começam a manobrar suas decisões na associação conforme seus interesses, colocando em segundo [ou terceiro, ou quarto…] plano o principal objetivo e a principal missão da associação, que é atender aos interesses de toda a classe de taxistas da cidade e, além disso, utilizam-se de toda a estrutura da instituição [física, inclusive], transformando-a numa sede do seu grupo.
Isso é comum em muitos setores na nossa sociedade, mas, como isso pode ocorrer no seio de uma religião tão aberta, democrática e plural como a Umbanda?
Vamos em frente.
A Umbanda é uma religião brasileira. Ser brasileira significa, literalmente, carregar em seu bojo o mix cultural brasileiro, que condiz, basicamente, no seguinte: o tripé religioso-cultural formado pela influência dos nativos brasileiros (ou indígenas, os nossos ancestrais diretos nessa terra, se, pelo prisma da antiguidade olharmos), dos africanos de várias nações que por aqui aportaram em decorrência do tráfico escravagista e do cristianismo europeu (neste caso, temos o catolicismo advindo de Portugal muito presente, mas também a influência massiva do kardecismo, originalmente francês, mas bem abrasileirado), predomina e direciona teologicamente, esteticamente, ritualisticamente e arquetipicamente a nossa religião.
Além disso, podemos citar também que a Umbanda é uma religião natural (porque cultua os Orixás, divindades da Natureza), espiritualista (porque lida com a presença e a atuação de espíritos – os nossos guias espirituais – graduados pelos Orixás) e magística, pois, em todas as suas influências [essas três principais e outras] apresenta os recursos mágicos como base fundamental dos seus rituais.
Mas também temos outras influências: Encantados, Naturais, Ciganos e Linha do Oriente trazendo contribuições culturais conhecidas por nós no plano material, mas também de dimensões paralelas à nossa, enriquecendo a nossa religiosidade, mas, tendo como base de apresentação, para melhor compreensão dos seus adeptos, a cultura brasileira.
Caboclos e caboclas, pretos-velhos e pretas-velhas, baianos e baianas, boiadeiros e boiadeiras, marinheiros e marinheiras, cangaceiros e cangaceiras, malandros e malandras etc., são alguns dos exemplos de linhas de trabalhos que podemos citar e servem como uma ponte de ligação entre os adeptos da nossa religião e a Fé, entre os umbandistas e a Divindade.
Tendo isso dito, apresentaremos o nosso ideário.
Com essa compreensão e clareza, entendemos que não podemos promover uma inversão da pirâmide. Trocando em miúdos: todas as características culturais, arquetípicas, estéticas e ritualísticas, trazem força à religião umbandista, são fundamentais para a manifestação de uma religião tão colorida quanto a nossa (pois, sem tais recursos, seria uma religião pálida como tantas outras), mas, em hipótese alguma, podem ou devem se sobrepor à Fé.
A Fé é o primeiro sentido da Vida, básico e fundamental, é o motor de tudo e, não à toa, forma a primeira Linha de Umbanda, sob a égide de nosso Pai Oxalá (o Senhor do Espaço) e de nossa Mãe Logunã (a Senhora do Tempo).
O que temos visto, infelizmente, é a predominância de ideais ou ideologias, no seio religioso umbandista, por intermédio de grupos sociais, culturais ou até políticos, tentando ditar o rumo da religião a seu modo, num verdadeiro aparelhamento teológico, doutrinário, litúrgico, filosófico e ritualístico.
E isso é um fator perigosíssimo!
A Umbanda, única e tão somente por sua essência, é avessa a todo e qualquer tipo de preconceito. Como nos disse, certa feita, um senhor Preto-Velho: “Meu filho, o preconceito é a maior erva daninha da sociedade em que vivem, no mundo material”. Pois, carregamos tal ensinamento como um aprendizado valiosíssimo e buscamos multiplicá-lo por intermédio do nosso trabalho.
Isso significa dizer que qualquer manifestação de racismo, homofobia, misoginia, misandria (situação mais rara, mas existente) etc., não deve ser tolerada no ambiente umbandista, pois, a nossa religião é uma Mãe que acolhe, de braços abertos, a todos(as) aqueles(as) que com Fé e Amor se entregam ao aperfeiçoamento [seu e de tudo e todos ao seu redor] na caminhada evolutiva.
Assim como, não se deve tolerar na Umbanda, todo e qualquer preconceito para com formas de manifestação e pensamento diversos e que, pura e simplesmente, enxerguem o caminho de retorno à Origem (Deus / Deusa) de formas diferentes. Temos uma religião com uma coluna vertebral forte e muito firme, mas que aceita no seu corpo a diversidade e a pluralidade.
E tudo isso que aqui citamos vem ocorrendo, cada vez mais, e o aparelhamento vai criando bolhas que incham-se, dando a falsa sensação de crescimento. E isso [o inchaço] na Umbanda, pode resultar numa explosão que exponha definitivamente a enfermidade.
No corpo físico, entre outras causas, o inchaço pode ocorrer por lesões ou reação alérgica; então, já entendemos que no ambiente religioso ele é uma manifestação doentia, que dá a falsa ideia de crescimento.
Concluindo, inchaço não é crescimento, pois, no caso do aperfeiçoamento espiritual, sabemos que o segundo citado [o crescimento] só pode se dar “para dentro”. Crescemos a partir da evolução íntima, do progresso interior e, só assim, manifestaremos “para fora” algo realmente essencial.
Por isso, aconselhamos a você, umbandista, que observe a Fé como motor fundamental da sua religiosidade. Isso não significa dizer que devamos tolerar qualquer coisa, especialmente preconceitos dos mais diversos, pois, a nossa religião é alvo de muitas manifestações preconceituosas e de racismo religioso, mas, também não pode ser aparelhada por umbandistas [ou por quem se diz, por interesses escusos, umbandista] com manifestações racistas, misóginas, homofóbicas etc., bem como, com ideologias políticas predominando e se sobrepondo à Fé e ao Amor (tendam tais ideias ou ideologias para um lado ou para o outro).
Assim, concluímos respondendo à pergunta colocada lá no início do texto, dizendo que o aparelhamento ocorre no seio umbandista a partir do protagonismo dos seres encarnados que a formam no plano material, podendo causar desvirtuamentos (dependendo do grau de aparelhamento) nas suas funções divinas e espirituais. Isso nunca ocorre por influência dos nossos guias e mentores, quiçá, dos Orixás.
Apropriação Religiosa
Aproveitamos este texto para trazermos à baila uma reflexão também importante, na nossa visão, no que se refere à apropriação religiosa que ocorre com elementos da Umbanda, no Brasil.
Sempre ouvimos falar em apropriação cultural. Ela se dá quando elementos de uma determinada cultura são absorvidos por uma cultura dominante. Podem ser símbolos, vestimentas, costumes, objetos, hábitos, comportamentos, expressões artísticas ou culturais etc. E pode ocorrer no comportamento, nas artes, na música, na linguagem, no conhecimento em geral e na religiosidade.
Segundo Liz Bucar (2022): [,,,] O empréstimo religioso ocorre sempre que indivíduos adotam práticas religiosas sem se comprometer com doutrinas religiosas, valores éticos, sistemas de autoridade ou instituições. Isso pode ser moralmente neutro. Se um não budista pratica meditação por meio de um aplicativo em seu telefone, isso provavelmente não incomodaria a maioria dos budistas, embora muitos insistissem que esta é apenas a ponta do iceberg do que a meditação significa em um contexto budista. Comunidades religiosas podem até mesmo acolher empréstimos, principalmente se os virem como um passo em direção à conversão. A apropriação religiosa, em contraste, é um tipo particular de empréstimo que causa dano ou ofensa porque exacerba alguma forma de injustiça. A intenção não é o que distingue entre os dois. Em vez disso, se o empréstimo se torna apropriação depende das formas existentes de injustiça estrutural , para usar um termo da falecida teórica política da Universidade de Chicago, Iris Marion Young. Determinar com que tipo de empréstimo estamos lidando envolve descobrir quais formas de desigualdade, marginalização, imperialismo e até mesmo violência o empréstimo pode reforçar, mesmo que sem o conhecimento de quem o faz […]
Fala-se, no nosso meio religioso, em apropriação cultural, em “embranquecimento” da cultura afro e/ou ameríndia. Tudo isso tem sido alvo de discussões intermináveis e caberiam em um texto próprio dedicado a essa questão.
Aqui queremos abordar, conforme já introduzimos, a questão da apropriação religiosa para com elementos umbandistas.
Vimos que a autora aqui citada faz uma diferenciação entre esse tipo de apropriação e o que ela nos apresenta como empréstimo religioso. Pois, temos visto, no Brasil, a passos largos, uma apropriação dos elementos da Umbanda que, em muitos casos, mostra-se como um “sequestro” dos mesmos.
Pode parecer forte o que aqui colocamos, na forma e no termo, mas, raciocinemos juntos.
Alguém critica o fenômeno religioso, a religiosidade e as religiões como formas organizadas dentro de uma Lei Maior para a manifestação e o desenvolvimento da Fé, o motor da Vida. Então, bate forte em tudo isso com suas críticas, porém, cria ou reproduz rituais “livres”, “descompromissados” e carrega para eles, elementos da Umbanda [uma religião…].
Quando nos referimos a elementos, falamos sim de objetos ritualísticos, mas, fundamentalmente, da manifestação de guias espirituais.
Ora, todos sabemos que onde houver um trabalho baseado na fé, no amor, na compaixão e na caridade, um guia espiritual se apresentará independendo da denominação ou da filosofia seguida. Isso é um fato!
Mas, o que muita gente ainda não sabe é que a Umbanda, que, como já dissemos, é uma religião brasileira (não é a única, obviamente, mas talvez seja a única das religiões brasileiras que está presente, de fato, do Oiapoque ao Chuí), é também, por conta do seu alcance e extensão territorial, a responsável pela formação, graduação e amparo de todas as linhas de guias espirituais que se apresentam nesses trabalhos.
A Umbanda é Mãe Divina por excelência e, concomitantemente, guardiã do Brasil!
Portanto, irmãs e irmãos, precisamos compreender que os guias espirituais são formados dentro das escolas formativas umbandistas do astral. Então, quando se manifestam em outros rituais naturais ou espiritualistas, obviamente, estão cumprindo com suas funções e missões. Porém, todo e qualquer desvirtuamento provocado pelos operadores encarnados, pode resultar no afastamento desses guias espirituais. Daí em diante, tudo fica por nossa conta, aqui no plano material, tendo a nossa responsabilidade como condutora dos trabalhos.
Da mesma forma, um templo umbandista deixará de sê-lo, espiritualmente (ainda que isso não se mostre na sua fachada material), quando houver desvirtuamento, pois, será abandonado por sua egrégora sustentadora.
A apropriação religiosa é perigosa, pois, coloca guias espirituais graduados na Lei Maior, na Justiça Divina e na Sagrada Lei de Umbanda sob a égide, muitas vezes, de uma lei própria e conveniente às ideias deturpadas ou, até mesmo, aos vícios de espíritos encarnados.
Tudo isso, aparelhamento (ideológico, na maioria das vezes) e apropriação religiosa exterior, dos nossos elementos, têm sido muito propagados nas redes sociais. Por isso, sugerimos a você que recorra à Divindade que habita em seu íntimo, nas suas orações e reflexões; que suspenda o juízo, procure não emitir opiniões num primeiro momento e tente enxergar as coisas como elas são. Certamente, se assim o fizer, a Divindade e os seus mentores espirituais lhe mostrarão o caminho.
Talvez este texto lhe cause uma série de dúvidas e questionamentos. Mas esse também é um dos nossos objetivos. Portanto, reflita!
Um saravá fraterno!
André Cozta
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
BUCAR, LIZ. O que é apropriação religiosa e porque ela é importante?. The University of Chicago – Divinity School. 09Set 2022 – https://divinity.uchicago.edu/sightings/articles/what-religious-appropriation-and-why-does-it-matter / Consulta em 13Mar 2025
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